O tema não é novo. Tem, aliás, 10 anos mas nunca passou do papel. A Sociedade Protectora dos Animais do Porto (SPAP) está judicialmente envolvida com a Câmara Municipal de Gondomar (CMG) num processo que se arrasta desde 2011 e que tem como objetivo obrigar o município a conceder a licença para a construção de um canil, num terreno que da SPAP na Quinta da Missilva. A Protectora insiste numa construção urgente e a Câmara, Junta de Freguesia e moradores do bairro desaprovam totalmente o equipamento para aquela zona. Pelo meio, fala-se em “falta de transparência e comunicação” em todo este processo.
Ermelinda Martins é quem dá a cara e dirige a Sociedade Protectora dos Animais do Porto há 12 anos. Quando assumiu funções de presidente, conta, a Protectora “estava falida” mas não foi por isso que atirou “a culpa para os anteriores” dirigentes. Fala assim ao Vivacidade para explicar o porquê da sua indignação com o atual executivo da CMG, a respeito da construção de um novo canil para a SPAP, em Baguim do Monte. “As pessoas vão para os sítios para resolver os problemas ou então não vão”, comenta.
Contando “o problema” do início, a SPAP fez, em 2004, um Pedido de Parecer Prévio (PIP) à CMG para a construção de novas instalações, em Baguim do Monte, que contemplavam um edifício para apoio administrativo, serviços de pessoal e hospital veterinário, um hotel para animais e instalações para receção, tratamento e alojamento de animais para lá encaminhados. O PIP era, dois anos mais tarde, aprovado pela CMG e a SPAP compra um terreno com a dimensão de cerca de 80 mil metros quadrados na zona residencial da Quinta da Missilva. Com o PIP aprovado e as licenças de especialidade em ordem, a SPAP aguardava quatro anos pela licença camarária para poder construir, até que decide, em 2010, dar entrada com um processo judicial no Tribunal para obrigar a CMG a pronunciar-se. A 10 de fevereiro de 2011, a Câmara decide-se e indefere o licenciamento com base num parecer emitido pela FEUP em que refere “ser prudente” não aprovar o licenciamento, por questões relacionadas com o ruído. Três meses após a tomada da decisão, a SPAP leva novamente o caso a Tribunal para, desta vez, pressionar a CMG a conceder a licença para a construção.
“Quando o problema for resolvido, a Câmara de Gondomar vai ser penalizada”
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A presidente da SPAP, Ermelinda Martins quer uma indeminização para a Protectora. Com 10 anos passados desde a intenção de construir umas novas instalações em Baguim e com a chegada de novos líderes políticos ao concelho, Ermelinda acredita que chegou o momento de voltar a pressionar a Câmara para aprovar a licença para o canil. Já no final do ano passado, a presidente almoçou com Nuno Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Baguim do Monte, mas o encontro “em nada resolveu o problema”, conta ao Vivacidade. Depois, tentou a Câmara. “Uma voluntária pediu uma audiência com o presidente. Quando lá chegamos disseram-nos que o senhor vice presidente nos ia receber. Eu neguei ser recebida pelo vice-presidente. Nós queríamos falar com o presidente. Passados uns dias recebemos uma carta a dizer que tínhamos faltado à reunião com o vice-presidente. Enviei uma carta de resposta a dizer que queríamos ser recebidos pelo presidente e estou à espera da resposta”, refere. “Quando o problema for resolvido, a Câmara de Gondomar vai ser penalizada. E não vai ser assim tão pouco porque neste momento nós queremos construir e ser indemnizados pelo que estamos a perder. Quem vai pagar vão ser os cidadãos de Gondomar e não vão ser os moradores da Quinta da Missilva”, afirma ainda. “Dizem que têm 400 processos no Tribunal e a Protectora mostrou abertura para resolver a questão fora dos Tribunais e a recetividade da Câmara foi zero”, acrescenta.
Da parte da Câmara, o presidente Marco Martins não compreende o porquê da presidente da SPAP não ter aceite a reunião com o vice-presidente. “Essa senhora pediu uma audiência sobre um processo de urbanismo e como para qualquer pessoa remeteu-se para o vereador do pelouro. A senhora tinha uma audiência e faltou. Se tem alguma questão judicial com a Câmara tem que a colocar, não colocou”, explica Marco Martins ao Vivacidade.
“Pode haver aqui uma bomba relógio”
Para Nuno Coelho, presidente da Junta de Baguim do Monte, a questão do canil pode ser vista de três vertentes diferentes: a técnica, a do cidadão e a do autarca.
“Tecnicamente o processo teve um determinado andamento, umas determinadas tomadas de decisão pelos serviços municipais, com maior ou menor transparência. Acho que foi com muito pouca transparência. Este processo foi todo gerido num gabinete, na parte do urbanismo, e havia uma sintonia muito direta com o anterior vice presidente da Câmara. Questiono a falta de transparência e a falta de poder de consulta quer da Junta de Freguesia quer do cidadão”, começa por explicar Nuno Coelho. “A visão do cidadão e baguinense que sou, é que eu não sou minimamente contra os animais. Aliás, sou um acérrimo defensor dos animais. Mas há uma coisa pela qual também sou defensor. A minha terra e a qualidade de vida da minha terra. E isso leva-me a que tenha que questionar uma sadia convivência entre eventualmente 2000 cães ao lado de eventualmente 2000 humanos e se não vai haver contrariedades e conflitos no dia a dia. Eu acho que sim enquanto baguinense”, acrescenta. “Enquanto presidente de Junta compete-me pôr as duas visões de lado. Compete-me defender acima de tudo a população e a sua qualidade de vida. Fico estupefacto com a falta de transparência que existiu no processo. Várias vezes tentei consultar o processo na Câmara e nunca consegui. Não tenho o processo comigo, tenho cópias que arranjei por vias travessas e só depois deste executivo entrar é que comecei a ver exatamente como está o processo. A falta de transparência veio dar naquilo que a população e os autarcas na Câmara e Freguesia temiam. Pode haver aqui uma bomba relógio. E a bomba relógio não é boa para a população nem para os animais”, esclarece o autarca.
Projeto com interesse mas “nunca naquele sítio”
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Ainda durante o seu último mandato como presidente da CMG, Valentim Loureiro referia que caso a Sociedade Protectora dos Animais consiguisse “assegurar que pode ultrapassar todos os possíveis problemas de ruído” a situação poderia “ser revista”. Para o atual presidente, Marco Martins, “o que existe é um processo que foi indeferido de licenciamento e está arquivado”. “O projeto poderia ter interesse mas nunca naquele sítio”, conta. Nuno Coelho partilha da mesma opinião. “Eu gostaria de ver essa estrutura num sitio que não viesse a provocar, mesmo que ao de leve, questiúncula entre os animais e os seus direitos e os humanos e os seus direitos”, explica. “Se eu acho que a Quinta da Missilva é a melhor localização? Acho que não. É um erro tremendo colocar ali um equipamento projetado com a dimensão do canil mesmo ao lado de moradias”, acrescenta o presidente de Baguim.
No entanto, o autarca admite que “pode haver desenvolvimentos em todos os sentidos” e por isso mesmo já tentou “averiguar a disponibilidade da SPAP de poder fazer a construção noutro local, com boas acessibilidades” mas, diz Nuno Coelho, “há falta de propensão para o diálogo e isso não é bom para ninguém.” “Já propus uma localização atrativa na freguesia à volta dos 40 mil metros quadrados”, conta ainda. Ermelinda Martins diz que o presidente da Junta “só pode estar a brincar”. “Falou-me como se não tivéssemos direitos adquiridos e não tivéssemos um terreno já nosso”, afirma. “Isto é um processo político. Não há vontade política para resolver isto”, insiste. “Durante muitos anos, aguentámos e ficamos calados. Isso vai acabar. Estamos a criar uma plataforma de divulgação da Protectora para breve”, conta ao Vivacidade a presidente da SPAP.
Nuno Coelho, por sua vez, explica que “insistir nesta guerra teórica e no ‘quero, posso e mando’ só dá chatices para todas as partes.” “Quero sentar-me à mesa com a Câmara, com a SPAP e com representantes dos moradores e ver uma alternativa viável que não incomode ninguém. Apelo à senhora presidente da SPAP que se sente connosco”, acrescenta. Uma coisa é certa, garante o autarca, “eu estarei sempre ao lado da população.”
A voz do povo
Quando tiveram conhecimento do que se poderia passar no seu bairro, os moradores da Quinta da Missilva uniram-se e criaram uma comissão contra a construção do canil. Chegaram inclusive, a organizar uma manifestação. Atualmente, Aníbal Queijo e Simão Sousa assumem-se como porta-vozes desse grupo criado.
O primeiro começa logo por esclarecer ao Vivacidade: “Nós não somos contra os animais”. Mas “primeiro temos que ter em conta os humanos”, refere Aníbal Queijo. Se dúvidas houvesse, o segundo, Simão Sousa, exibe o seu cartão de filiação ao Partido Pelos Animais e Pela Natureza (PAN). “Sou o filiado número 600 do PAN. A SPAP não gosta mais de animais do que nós”, afirma. “Quase todos os moradores da Quinta da Missilva têm animais. A SPAP está a tentar criar uma guerra com os moradores e é complicado porque cria-se um braço de ferro e depois não haverá mais sossego. Eu contraí um empréstimo para comprar uma habitação. É o meu património que vai ser desvalorizado. Vão mexer no meu património, em algo que luto todos os dias para o meu filho e vou ter que imputar essa responsabilidade a alguém”, remata Simão.
“Antes de se criar ali um conflito e uma situação insustentável existem alternativas. Gondomar tem muitos terrenos onde o conflito entre humanos e animais não existe. Ali existem linhas de água, nasce lá o rio Torto”, adverte o outro morador, Aníbal Queijo. “A SPAP comprou o terreno e isso foi uma opção. Nós não temos que aceitar nada. Já lá estávamos antes. Quando compraram assumiram um risco”, diz ainda Simão Sousa.
Já Ermelinda Martins, explica ao Vivacidade que está a perder dinheiro todos os dias e que o valor da indeminização que “vai exigir” já vai “nos milhares de euros”. Se tiver licença para construir na Quinta da Missilva, esclarece que não vai hesitar. “A população pode revoltar-se mas penso que a polícia em Portugal ainda funciona. Se tivermos o projeto aprovado com a licença e pudermos construir, pode vir toda a gente da Quinta da Missilva porque eu chamo toda a polícia para os tirar de lá”, afirma. Contudo, poderá haver algumas cedências por parte da SPAP. “Estamos dispostos a discutir com o presidente da Câmara e a ouvir sugestões que passem por colocar árvores e barreiras sonoras”, explica por fim.
Qual o futuro para os animais da SPAP?
Com ou sem canil em Baguim do Monte, os cerca de 800 cães e 100 gatos depositados em pequenas jaulas vivem atualmente em condições desfavoráveis, num edifício velho em alto estado de degradação, humidade e sujidade, localizado no antigo matadouro da cidade do Porto, em S. Roque. Por agora, resta aos canídeos e felídeos esperarem por uma decisão do Tribunal ou por um entendimento da SPAP, Câmara de Gondomar e baguinenses.
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