Como foi a sua vida vivida na infância e adolescência em Lisboa, onde nasceu?
Foi uma infância espetacular. Faço parte duma geração que, apesar de tudo, teve muita sorte. Extremamente equilibrada, com uma educação equilibrada, muito de rua em comunhão com a natureza e com a comunidade, passeava-se muito, andava-se de bicicleta, jogava-se à bola. Tudo o que era atividade física era bom. Tive uma infância muito feliz e andei numa escola muito especial: o Externato Grão Vasco, que era pertença da Ana Maria Caetano, filha do Marcelo Caetano, e que foi o primeiro no ensino integrado de crianças com necessidades educativas especiais. Integra crianças com doenças mentais no ensino regular. E é uma educação para todos! Esse convívio foi de um enriquecimento extraordinário e uma lição para a vida muito grande.
Ouvimos, muitas vezes, pessoas mais velhas dizer: “no meu tempo é que era bom”. Sem querer comparar o presente com o passado, éramos felizes a jogar ao peão, às escondidinhas, à macaca, ao berlinde, etc., enquanto agora não vemos nada disso, mas muitos jovens agarrados ao digital... Acha que isso faz a diferença?
Sim, claro que faz! Estamos todos, crianças e adultos, muito ligados à tecnologia e, obviamente, que nos retira às capacidades sociais que temos. Isso tira muito às crianças, na socialização e na interação humana, própria do comportamento. É assim que nós crescemos e é assim que obteremos a chamada ‘inteligência emocional’ e com a tecnologia até à ponta dos dedos, nesse aspeto, não nos ensina nada. Claro que perdemos com isso!
Temos também lido reações nesta pandemia que imensas pessoas estão saudosas de poder novamente abraçar-se e tocar-se, porque faz parte do ser humano, lamentando-se que antes – quando podiam – nem sempre o faziam ou não tão regularmente. Com o covid-19 acha que essas expressões de afeto voltarão a trocar-se normalmente?
As manifestações de afeto são fundamentais. Por mais que melhore, vamos sempre ficar de pé atrás, por este ou por outro vírus que surja. Se for este vamos voltar a confinar-nos, num futuro muito próximo. Neste caminho imparável da tecnologia vamos tendo alguns achaques e algumas pequenas revoluções de forma a conseguirmos adaptar-nos a ela, sem deixarmos que nos engula. É como Einstein dizia: “no dia em que o comportamento humano sucumbir à tecnologia tornamo-nos estúpidos”. De facto, é isso que nos está a acontecer. Temos de reverter, um pouco, esse processo.
O que o levou, inicialmente, a optar pela arquitetura, área em que se formou?
Eu gostava de tudo em miúdo. Foi muito difícil tentar descobrir o que fazer em adulto. Lembro de fazer os testes psicotécnicos e o psicólogo me dizer: “você pode fazer o que quiser”. Eu respondi: “Obrigado. Então estou aqui para me ajudar a decidir e diz-me uma coisa dessas” (risos). Sempre tive boas capacidades e capacidades para realizar muita coisa. Mas entre a física, a matemática, o desenho, a criatividade, um bocadinho da isenção de horário que os arquitetos beneficiavam – assim achava –, isso veio a confirmar-se. Fui muito feliz enquanto arquiteto. Os horários era conforme me saía, se era produtivo ou não. Era assim que se trabalhava. E acho que deveria ser assim o nosso trabalho, além de ser muito mais prazeroso. Podermos trabalhar só quando nos está a dar gozo e conseguirmos produzir. Claro que se nunca nos der gozo, também não é conveniente, obviamente (risos). Correu-me bastante bem, foi uma profissão de sonho!
Num caminho bem distinto, como foi passar da arte de projetar para a arte de representar? Sentiu-se desencantado?
Não, de todo! Comecei a fazer teatro amador e a ter aulas. Gostei muito. A passagem foi extremamente suave. Um dia fiz uma peça do Francisco Nicholson, para a RTP. Ele estava a escrever uma novela e disse-me: “daqui a uns dias vou-te ligar”. E assim foi. Telefonou-me e comecei a fazer televisão. Foi por diante. De repente, tive de deixar a arquitetura até hoje. Embora goste muito de arquitetura!
Mas naquela altura em que estava hesitante no que escolher para o seu futuro, já que era bom em tudo, a representação / carreira de ator também entrava na dúvida de então?
Não, nem sequer punha a hipótese. Na época ser ator em Portugal era coisa de saltimbanco. Os atores que eu conhecia tinham uma vida muito pouco equilibrada financeiramente. Ainda hoje! E portanto nunca equacionei. Ser ator de teatro era viver para pagar a renda, sem saber o dia de amanhã. Nunca equacionei por isso.
Neste sentido e nos últimos anos, tem dividido o seu tempo e a sua residência entre a Europa, EUA e América Latina. De que forma vai gerindo todos esses trabalhos?
É uma questão perfeitamente normal. Tem de se ir trabalhar, não tem muita gestão. Ou seja, vou trabalhar, passo lá fora um tempo. Temos novas tecnologias que nos permitem fazer umas chamadas sem grandes custos. E depois volto, assim que puder. Não troco isto por mais nada: este nosso país é absolutamente extraordinário.
Contudo, há mais oportunidades lá fora, na vida de ator, do que no nosso país? Vendo pelos seus últimos trabalhos...
Há tantas oportunidades como as outras. Ora bem, enquanto estou lá fora não há muito que gerir: estou fora e não posso fazer mais nada. Mas pode influenciar a minha escolha em aceitar novos projetos. E influencia! Há períodos que venho de fora e com muita vontade de ficar. Por causa da família: tenho duas filhas e uma mulher. Portanto, isso pesa muito! Depois de uma temporada fora eu preciso de aceitar uma temporada cá dentro.
E quais são as principais semelhanças, bem como diferenças - entre as propostas nacionais e as internacionais - em tudo o que é inerente ao ser ator? Ou seja, a relação com os colegas, a mentalidade, os guiões, os tipos de projeto em si, o reconhecimento e valor dado ou obtido, a satisfação do público, etc..
Há muitas semelhanças porque todos somos género humano. Mas no estrangeiro, o star sistem – como lá lhe chamam (o estrelato) – é muito maior. As estrelas são maiores, as quantias também. Daí que há uma gestão de ego mais complicada e situações um bocadinho menos simpáticas. Porém, há questões muito similares: há pessoas de quem ficamos mais próximas, outras menos próximas. Mas, apesar de tudo, há um distanciamento um pouco maior nos EUA do que cá. Nós, portugueses, pelo facto de sermos latinos somos mais dados. Há uma proximidade e simpatia diferente. Já na América Latina é igual ou até melhor do que em Portugal. São muito calorosos, são latinos – lá está! É mais uma diferença entre povos do que no ambiente das filmagens. O que difere bastante duns sítios para outros e de produções entre si é o orçamento. O orçamento manda tudo: na facilidade de trabalho, nos guiões, a qualidade e complexidade da produção, o tempo para se preparar. Nós nisso perdemos muito em relação ao continente americano. De norte a sul! Há sempre mais dinheiro para fazer filmes. Mesmo na Argentina, que tem bom cinema e que é um país em constante bancarrota, possuem um orçamento de 2/3 milhões de dólares para realizar um drama clássico de duas horas. Comparado connosco é uma loucura! Temos mesmo orçamentos muito pequeninos.
Mesmo os vencimentos dos atores e demais agentes envolvidos no filme são muito melhores, certo? O que o ajuda a querer contracenar lá fora, não só pelo impacto e projeção, mas também pelo encaixe financeiro...
Sim, claro que sim. Há preocupações financeiras, que todos nós tivemos, mas sobretudo a situação familiar, o equilíbrio. É muito difícil: é mais difícil para a família que fica cá que para mim, que vou. Eu vou e não tenho mais obrigações lá fora do que me preocupar apenas com o trabalho todo o dia. Aqui, há duas crianças para criar, para levar e buscar da escola, levá-las às atividades e ainda trabalhar por cima disso. Já para não referir a lida da casa. Estou a falar das mulheres portuguesas e do mundo inteiro que são muito maiores e melhores do que nós, muito mais trabalhadoras. Têm uma capacidade absolutamente extraordinária de gerir tudo isso. Confesso que isto tem um bocadinho de egoísmo ao ir lá para fora: estou nas minhas sete quintas. É uma loucura, é ótimo!
Conhece o município de Gondomar, no Grande Porto? O que tem a dizer sobre ele?
Sim, claro que conheço. Ora eu tirei o meu curso de Arquitetura no Porto. Costumo dizer que sou do Porto de alma e coração. E costumo dizer que nasci em Lisboa por engano. Digo sempre isto. A minha família do meu pai é toda do Porto e ainda vivem todos aí, à exceção do meu pai que veio viver para Lisboa. Por isso é que vim e vivo em Lisboa. Depois voltei para estudar no Porto. Adoro o Porto e o Futebol Clube do Porto – sou portista de alma e coração, também! – e tenho muitas coisas boas a dizer de Gondomar, de Matosinhos, da Maia. O meu avô viveu em Valbom até aos cinco anos. Depois mudou-se para o Porto, a seguir para Braga e voltou novamente ao Porto, para frequentar a faculdade. Há, portanto, aqui uma grande tradição familiar no Porto que eu adoro!
Dadas essas raízes do avô em Valbom, que histórias se recorda nessa freguesia gondomarense?
Eu conheço Valbom de visita e está muito diferente daquilo que era há 70 anos! Mas as histórias de Valbom são as melhores, fazem partem do imaginário da família. Embora agora esteja um pouco estragado, por estar muito mais urbanizado. Já não é aquela aldeia que era antigamente. Mas gosto muito do Grande Porto. Eu não o faria, mas se fosse excêntrico iria viver no Porto e apanhava o helicóptero todos os dias para vir trabalhar em Lisboa. É um pouco isso.
E que análise faz à vivência da cultura nesse concelho, com vários grupos teatrais?
É algo fantástico! Eu conheço pouco a vida teatral de Gondomar, mas acho extraordinário que seja assim. O teatro traz consigo umas ferramentas fantásticas: foi por aí que eu comecei. Importa manter assim a cultura viva.
Que conselhos julga importantes deixar a essas companhias cénicas amadoras, que vivem de muita carolice e voluntarismo? O que devem fazer para conseguir manter-se?
Primeiro, não se tornem profissionais, porque ser amador é isso mesmo. É fazer por amor. E para se manterem com paixão. Ainda me lembro que quando passei de amador para profissional, comecei a cobrar dinheiro pelo que fazia. De repente, o prazer desequilibrou-se. Por isso, enquanto forem amadores isto não para. Cada um traz um pouco de qualquer coisa. Só é preciso o dinheiro para as contas da luz e da água e o resto é da alma. Com muita vontade, para vós e para quem vê.
Falarmos destas questões é falar, precisamente, do problema generalizado que vive a Cultura em Portugal, em que muitos dos artistas estão gravemente lesados – implicando mesmo a sua sobrevivência – com esta paragem forçosamente alargada devido ao covid-19...
Vejo pessimamente. Estamos a falar de pessoas que vivem exclusivamente do seu ordenado. São recibos verdes e disso vivem. Andámos há muito a falar do «estatuto dos intermitentes»: são pessoas que trabalham nos espetáculos. Elas trabalham, por ex., seis meses e depois não trabalham dois. Depois trabalham cinco e não trabalham um, etc.. É assim que as produções são: não estamos sempre a trabalhar para a mesma pessoa e não começamos com outra logo de seguida. E até há pouco tempo pagávamos 29,6% à Segurança Social, dos recibos verdes, pelo que ao fim de três meses estávamos a pagar 90% dum ordenado. Este estatuto que referi pretende que no mês, entre produções, que não se trabalhe se tenha um subsídio de trabalho automático. E enquanto estiverem empregados continuam a pagar normalmente. Que possam aceder de imediato ao subsídio de desemprego, mal se encontrem nesta situação, o que não acontece. É assim que sucede em França e noutros países europeus. Não estamos a ensinar nada de novo! Isto reduziria um pouco o drama que estamos a viver atualmente. Há muitas coisas que precisam de ser tratadas na Cultura e, desde logo, políticas culturais educativas. Os programas das escolas de Português e/ou de História deveriam incluir sempre Dramaturgia Portuguesa, antiga e contemporânea. E desde a primária até ao 12.o ano. Isto ajudaria a criar públicos, ajudaria as companhias de Teatro a ter mais meios e, ao ter mais público, não tivessem que depender tanto de subsídios, quando eles existem. Por vezes não chegam às companhias mais necessitadas. Se queremos a Língua Portuguesa, a nossa Pátria, como aposta cultural, acho que a primeira coisa seria pôr o Teatro na Escola, como pomos as leituras obrigatórias!
Nesta última questão, regressamos ao início, quanto à questão da educação inclusiva e da saúde mental. Soube-se, entretanto, que Portugal é o 5.o país da OCDE que mais consome ansiolíticos e antidepressivos, tendo aumentado em mais de 400 mil embalagens compradas comparando com o mesmo período em 2019. Que mensagem, até com carácter terapêutico, nos pode deixar para as pessoas viverem bem e com qualidade?
É um enorme drama! Eu não sabia como começar a responder à pergunta. A questão da saúde mental, dos seus cuidados e das patologias específicas – muitas delas sem resposta neste país – é gigantesca! Um país sem cuidados na saúde mental é um país que não se cuida! Nós temos lacunas enormes. Nós temos alguns hospitais centrais que tratam a saúde mental, mas não chegam para um décimo das encomendas. Não sei, em termos de políticas de saúde, por onde deveríamos começar. Mas há muito a fazer! Há algumas iniciativas privadas que são o que são. Apesar de fantásticas, apenas dão a conhecer ao público em geral determinadas doenças para as pessoas poderem identificar, mediante uma doença que se passe a ter e seus sintomas. Muitas vezes é pela internet ou por informações desta ou aquela Associação que conseguimos identificar determinada doença, e não pelo psiquiatra ou pelos serviços nacionais de Saúde... É muito complicado! ▪