
Há 43 anos Paulo Ferreira nascia para o ciclismo. O gondomarense de gema foi sempre ligado à terra que o viu crescer e ainda hoje vive no concelho. Marcou a história da modalidade nos anos 90 e passou por nove equipas, desde o Centro Ciclista de Gondomar, à Sicasal e ao SL Benfica. Em 2011, lançou um livro onde conta as histórias de uma carreira profissional recheada de títulos, mas conta ao Vivacidade que afinal, o dever para com os ciclistas ainda não está cumprido.
Em 1984, quando viu o ciclista Paulo Ferreira a vencer uma etapa da Volta a França, sentiu que um dia podia estar naquele lugar? (risos) A minha história é ainda mais incrível. Nessa altura vendia fruta e estudava. O objetivo, quando passei para o quarto ano de escolaridade era ter uma bicicleta BMX oferecida pelo meu pai. Quando a recebi, ia para a escola de bicicleta e quando ia vender fruta no Alto da Serra o senhor Daniel, um cliente da minha mãe que tinha sido bicicleta de estrada, desafiou-me um dia a fazer um treino com ele. Eu fui com a minha BMX e acompanhei-o, mesmo na subida. Fiz 60km numa bicicleta BMX e fiquei completamente esgotado e cheio de fome, mas a partir desse dia tudo começou. Depois conheci o Império dos Santos que me emprestou uma bicicleta e aconselhou-me a ter alguns cuidados com a alimentação. Ele era o mestre do ciclismo.
Em 1986, começa a competir como amador pelo Centro Ciclista de Gondomar, onde o seu pai era membro da direção. Como foi esse início no ciclismo? Só queria ir na frente a puxar pelos outros ciclistas. A primeira corrida que fiz, sem treinos, fiquei em sexto lugar. Na corrida de Gondomar já estava tudo a gritar pelo “Paulinho, de Gondomar” e nessa noite eu nem dormi, com os nervos.
Mas o envolvimento no ciclismo foi familiar, porque o seu irmão também era mecânico da equipa. Esse apoio foi importante na sua carreira? Sim, foi sempre. Eu não sabia o que era lavar uma bicicleta porque ele não me deixava fazer isso. A família foi sempre um grande apoio, a par dos gondomarenses.
É dessa forma que surge o seu interesse pela mecânica? Sempre gostei de mecânica. Nas minhas horas livres ia sempre para a loja do Império dos Santos, afinava os travões, ajeitava as rodas e fazia um pouco de tudo.
O Império dos Santos que lhe emprestou uma bicicleta e não só... É verdade. E eu estimava tudo o que me emprestavam porque sentia que me queriam ajudar. O Império dos Santos emprestou-me uma bicicleta para treinar, porque eu não tinha hipótese de ter uma. Só o facto de ser uma bicicleta dele, para mim era tudo. A primeira vez que corri com uma bicicleta dele fiquei em quinto lugar. Depois dessa corrida ele disse-me que eu ia correr a Volta dos Descobrimentos, que era uma corrida inserida na celebração dos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses. Acabei por vencer essa prova.
Em 1989, assina pela equipa Tensai ainda como amador, mas não era só ciclista da empresa... Não, também era funcionário porque sempre trabalhei. Nunca me faltou nada a mim e ao meu irmão, mas os meus pais chegaram a passar fome e eu queria trabalhar para ajudar a família. Fui para a Tensai com a condição de trabalhar e treinar ao mesmo tempo. Quando venci a Volta dos Descobrimentos a Tensai disse-me que ia dedicar-me em exclusivo ao ciclismo. A partir daí começaram a dizer que eu ia dar ciclista.
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Em 1991, passa a ser profissional, ainda pela Tensai. Como foi essa transição? Foi uma transição esperada e correu tudo bem. Nesses anos - 1991 e 1992 - competi logo na Volta a Portugal e consegui ficar em quarto lugar, que foi o meu melhor resultado na prova. Estava imparável e venci muitas provas nesses dois anos.
Contudo, a Tensai acabou por ficar sem equipa de ciclismo. Porquê? Foram questões burocráticas e relacionadas com os apoios institucionais. A Tensai acabou como equipa profissional mas ainda hoje patrocina as equipas amadoras de ciclismo. Foi pena porque éramos uma família.
E despertou o interesse da Sicasal, que decidiu contratá-lo, em 1993. A Sicasal já era uma das grandes equipas de ciclismo de Portugal? Sim, já tinha um patamar muito alto. Já tinham centro de estágio e uma equipa de estrelas. Quando o Marco Chagas foi para a Sicasal, fomos todos atrás dele.
E o Paulo acabou por ser praxado, por ser o mais novo nessa equipa de estrelas. Conte-nos essa [risos] É verdade. Aqui em Gondomar eu era o menino de ouro, mas na Sicasal puseram-me logo na linha. No centro de estágio tínhamos quartos e eu ficava sempre com o Joaquim Gomes e o Gamito. Eles deixavam-me adormecer e depois convidava-me a fazer treinos noturnos e quando eu ia abrir a porta, levava com um balde de água fria que eles tinham colocado na parte de cima. Isto em pleno inverno. Mas essa foi apenas uma das muitas praxes que me fizeram.
Marco Martins, Presidente da Câmara de Gondomar, e Delmino Pereira, Presidente da Federação de Ciclismo, lançaram-lhe o desafio de continuar a servir o ciclismo. Já deu resposta a esses desafios? Em relação ao presidente da Câmara Municipal de Gondomar, já se encarregou de me pôr no Gabinete de Desporto. Em relação ao Delmino, ele sabe do que eu sou capaz e espero conseguir atingir o meu sonho.
Acha que o ciclismo foi esquecido em Gondomar? Sim, acabou por ser porque tínhamos boas estruturas e acabaram por não ser bem aproveitadas.
O que tem a dizer sobre a polémica do caso de doping que retirou a Lance Armstrong os 10 títulos conquistados na Volta a França? Se fizessem as análises como fazem noutros desportos talvez não fosse um fenómeno sempre associado ao ciclismo. Eu também cheguei ao ponto de ir treinar e ser controlado, mas isso acaba por ser normal. Só não percebo como é possível o Armstrong vencer várias Voltas à França consecutivas e não acusar doping em nenhuma análise. Fiquei triste quando vi a notícia, porque ele era o meu ídolo.
O que representa o Rui Costa para o ciclismo português? É um grande motivo de orgulho. Não é qualquer um que consegue ser campeão do mundo. O percurso dele é avassalador.
É na Sicasal que amadurece como ciclista? Sim, na Sicasal é que me apercebi do patamar que poderia atingir. Tínhamos todas as condições e os treinos eram muito rigorosos. Aliás, foi na Sicasal que conquistei a prova Porto-Lisboa e a Volta a Portugal do Futuro, que eram duas provas que ficaram na história do ciclismo português. Lamento a forma como acabou a Sicasal. O sonho da equipa era participar na Volta a França e estava prestes a ser concretizado.
Em 1996, nova etapa na carreira profissional com a ida para a Maia-CIN. Foi o seu melhor ano desportivo? Sem dúvida. Em questão de resultados desportivos, foi o melhor. Fui considerado o ciclista do ano, mas ao nível da equipa não foi bem assim. Nesse ano quando vestia a camisola amarela passava a “comer alcatrão”.
Três anos depois vai para o SL Benfica, onde esteve apenas um ano. No Benfica valia o nome da instituição. Acabei por ter uma saída atribulada e regressei rapidamente ao Centro Ciclista de Gondomar, que tinha um projeto novo.
Mas no Benfica teve a pior lesão da carreira. Como viveu esse período? Foi um momento horrível. A lesão foi na chegada à Lourinhã, tive uma queda e fiquei mesmo sem andar. Íamos numa estrada larga e nos últimos metros tínhamos um afunilamento, mas como íamos a sprintar quando começamos a apertar foi o pelotão todo ao chão. Tive três meses parado e pensei abandonar o ciclismo. Sinceramente cheguei a pensar no suicídio, mas tive a força necessária para ultrapassar essa fase. A família e os poucos amigos que tinha no ciclismo, ajudaram-me muito.
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Em 2000/2001, o Centro Ciclista de Gondomar estava a fazer um grande investimento no ciclismo. Foi esse projeto que o cativou? Sim, e até me entristece o projeto não ter continuado, porque tínhamos todas as condições para evoluir. Hoje, o Centro Ciclista podia ser como a Sicasal, se tivesse continuado. Tínhamos camiões, bicicletas de topo, o centro de estágio e vários escalões em competição. Foi tudo por água abaixo. Na altura eu vim porque acreditei no projeto. Perdi dinheiro, mas só pelo facto de voltar a Gondomar, nem hesitei. Ainda venci várias provas pelo Gondomar.
Em 2002, tem uma nova proposta, desta vez do Cantanhede. Na altura, cortaram-me o vencimento no Centro Ciclista de Gondomar e apesar do Cantanhede não ter as mesmas condições que o Gondomar, tinha um grande componente humana. Fui e, em 2003, venci o Grande Prémio de Gondomar, pelo Cantanhede. Na minha terra quem mandava era eu (risos). Foi um grande orgulho e Gondomar estava em peso a apoiar o Cantanhede, porque era a minha equipa.
Tem ainda uma curta passagem pelo Paredes, em 2004, e no ano seguinte, termina a carreira na Imoholding-Loulé. Como foi a fase final da sua carreira? Ainda tive a hipótese de fazer mais um ano pela Imoholding-Loulé, mas decidi terminar a carreira, em 2005. Decidi terminar na minha terra no Grande Prémio de Gondomar e ninguém me facilitou essa vitória, até pelo contrário (risos).
E em 2011, lançou a primeira edição do livro “Paulo Ferreira – Dever Cumprido”. Sente que o seu dever está mesmo cumprido? Como ciclista está, mas para com os ciclistas acho que não. O meu sonho é ter uma equipa de ciclismo em Gondomar. Já tenho um projeto preparado, mas ainda não posso avançar com mais pormenores.
Decidiu atribuir os direitos de autor do livro a Daniel Neves, ex-ciclista vítima de um acidente que o deixou com um elevado grau de incapacidade física. É uma forma de ajudar um dos verdadeiros amigos do ciclismo? Ver a evolução do Daniel é uma das coisas que mais me orgulha. Foi importante ajudá-lo e fico orgulhoso por poder ajudar o meu amigo.
Marco Martins, Presidente da Câmara de Gondomar, e Delmino Pereira, Presidente da Federação de Ciclismo, lançaram-lhe o desafio de continuar a servir o ciclismo. Já deu resposta a esses desafios? Em relação ao presidente da Câmara Municipal de Gondomar, já se encarregou de me pôr no Gabinete de Desporto. Em relação ao Delmino, ele sabe do que eu sou capaz e espero conseguir atingir o meu sonho. Acha que o ciclismo foi esquecido em Gondomar? Sim, acabou por ser porque tínhamos boas estruturas e acabaram por não ser bem aproveitadas. O que tem a dizer sobre a polémica do caso de doping que retirou a Lance Armstrong os 10 títulos conquistados na Volta a França ? Se fizessem as análises como fazem noutros desportos talvez não fosse um fenómeno sempre associado ao ciclismo. Eu também cheguei ao ponto de ir treinar e ser controlado, mas isso acaba por ser normal. Só não percebo como é possível o Armstrong vencer várias Voltas à França consecutivas e não acusar doping em nenhuma análise. Fiquei triste quando vi a notícia, porque ele era o meu ídolo. O que representa o Rui Costa para o ciclismo português? É um grande motivo de orgulho. Não é qualquer um que consegue ser campeão do mundo. O percurso dele é avassalador. Paulo Jorge de Moura Ferreira 43 anos Ciclista Cronologia: 1986/88 – C.C. Gondomar; 1989/92 – Tensai; 1993/95 - Sicasal; 1996/1998 – Maia-CIN; 1999 - S.L. Benfica; 2000/01 – C.C. Gondomar; 2002/2003 - Cantanhede; 2004 - Paredes; 2005 – Imoholding-Loulé; Como se classifica como ciclista? Era montanhista e sprínter. Qual foi o clube que mais o marcou? Sicasal Melhor ciclista com quem competiu: Joaquim Gomes Etapa mais exigente da carreira: Serra das Meadas, do Prémio SIC Maior conquista da carreira: Volta a Portugal do Futuro, em 1994