“Não se reivindica o impossível, apenas o respeito pela dignidade da pessoa”
Texto: ANDRÉ RUBIM RANGEL, jornalista
([email protected])
O facto de ser natural e viver no Centro do país, sente-se muito em Coimbra a disputa que há muitas vezes – não só política – entre Norte e Sul? Diferenças como o poder de compra, o custo de vida, etc…
Coimbra é para mim terra de adoção. Nasci em África e de tal origem me reclamo. É facto que em Coimbra, terra de serviços, os níveis salariais não se compaginam, p. e., com os de Lisboa e Porto. E nem sempre as políticas de preços se adequam ao poder de compra dos que aqui mourejam. Terra de serviços, nela avultavam, porém, duas grandes “indústrias”: a das “sebentas” e dos “quartos de aluguer”. À primeira, o crepúsculo com as novéis tecnologias da informação, a segunda resiste ante o escasso número de camas em residências de estudantes. Coimbra carece de “forças vivas” mais atuantes para contrabater diferenças: o amorfismo reinante reflete-se na sua capacidade reivindicativa. Perdeu o ceptro de centro de cultura por excelência. E falecem-lhe estímulos para reocupar o lugar a que faz jus.
Qual a razão e de que forma começou e se desenvolveu o seu interesse pelas questões do consumo, ao ponto de em 1989 ter fundado a Associação Portuguesa de Direito de Consumo – ainda ativa?
O propósito de tornar o direito percetível ao vulgo. Primeiro, com um consultório aos consumidores (Semanário Tempo, 1980). Com espúrias reações da Ordem dos Advogados que nos moveu um processo. Por pretender que o Direito era monopólio seu. O que causou a maior repulsa a doutos jurisconsultos como Ferrer Correia, Eduardo Correia, Pereira Coelho, Mota Pinto… Os abusos cometidos pela banca reclamavam firme intervenção. Com o alto patrocínio de Jacques Delors, promovemos, em Coimbra, em 1988, o Congresso Europeu «Das Condições Gerais dos Contratos / Cláusulas Abusivas»: um verdadeiro Congresso Mundial (32 países, 750 participantes). Uma pedrada no charco. Criámos então a AIDC – Associação Internacional de Direito do Consumo. Quarenta e cinco anos depois, prossegue o combate às iniquidades com que o mercado nos fustiga. “O medo guarda a vinha”: daí que esta intervenção contínua constitua decerto meio de prevenção geral suscetível de sofrear os atropelos que se abatem gritantemente sobre todos.
É a voz mais proeminente e conhecida em Portugal na defesa dos consumidores, ao longo de muitos anos. Mesmo assim, o porquê de tantos consumidores ainda indefesos perante os perigos atuais nesta área?
A primeira Lei de Defesa do Consumidor é de 22 de agosto de 1981: realce para o direito à educação do consumidor. A que se lhe seguiu é de 31 de julho de 1996: “Incumbe ao Estado a promoção de uma política educativa para os consumidores, através da inserção nos programas e nas atividades escolares, bem como nas ações de educação permanente, de matérias relacionadas com o consumo e os direitos dos consumidores...” Estado, regiões autónomas e autarquias locais proverão a:
- Concretização, no sistema educativo, em particular no ensino básico e secundário, de programas e actividades de educação para o consumo;
- Promoção de uma política nacional de formação de formadores …”;
- Promoção de ações de educação permanente de formação e sensibilização para os consumidores em geral.
Mais de 40 anos depois… o zero absoluto! Se se tivesse concretizado, nos anos 80, um tal programa, atingir-se-ia um sem-número de gerações: couraçando-as contra os embustes correntes no mercado e habilitando-as a reagir ao que de profundamente negativo persiste… A preparação reversa dos jovens influenciaria as famílias e lograr-se-ia a harmonia que inexiste. O outro pilar – o da informação – também em défice. Os Serviços Municipais do Consumidor, que a lei prevê, jamais se criaram: há uns ‘arremedos’ em um quarto dos municípios sem expressão. Sem quadros, nem meios, nem formação. A informação ao consumidor na rádio e televisão públicas também inexiste. E a lei obriga-o há 30 anos. Um autêntico crime de lesa-cidadania.
O que leva, no seu entender, a esta procura desenfreada das pessoas a querer consumir mais e mais, tantas vezes sem necessidade, a querer ter muito e em exagero? É uma doença? E como se a cura?
Ausência de formação para o consumo; acesso fácil ao crédito: compra-se o que se não precisa com o dinheiro que não se tem; empréstimos a juros usurários: 4 500% / ano em micro sociedades financeiras. Há distúrbios que carecem de diagnóstico e tratamento. Há pulsões de consumo, como no vício do jogo. Consumo compulsivo, desvios comportamentais que há que sofrear, cerceando as suas nefastas consequências. Há psicanalistas que dominam o fenómeno. As estratégias mercadológicas massificantes que se dirigem, contra a lei, a crianças, como a consumidores maduros, têm o seu quinhão de responsabilidade na forma acrítica como se encara o mercado.
Considera que se as pessoas fossem menos consumistas, sobretudo do que é supérfluo, haveria menos tipos de pobreza? Essa é uma equação sine qua non?
Talvez houvesse menos situações de endividamento excessivo, menos insolvências singulares, maior resiliência ao crédito selvagem, via sociedades financeiras em que menor é o escrutínio do BdP. Quem pode a quem precisa!
Aliás, houve dois grandes líderes mundiais que deram o exemplo dessa sobriedade de vida e de apoio aos mais pobres e que faleceram há pouco tempo: Papa Francisco e ‘Pepe’ Mujica? Eram, e de que modo, uma referência inspiradora para si? O que destaca neles?
Há inúmeros exemplos de despojamento, de rejeição a uma vida sumptuária, aos bens mundanos; nem pela recusa de uma via de ostentação se lhes veda o acesso à felicidade. Outros tantos exemplos se insinuam no dia-a-dia. Nem sempre quem aplaude o modo de vida dos simples lhes segue na peugada: daí o horrendo quadro que no Globo se nos oferece: a opulência de par com a mais pungente miséria!
Sendo especialista conceituado nesta temática – que não só dirigente, mas docente universitário –, nunca recebeu convite de algum Governo? Desejaria ter ocupado um lugar ministerial?
A incomodidade das nossas posições não arranca aplausos ao poder. Houve, de certa feita, um convite: a saúde precária de um familiar inibiu o aceitasse. Em 45 anos de vida pública, uma só vez sem exemplo. Pela crueza das denúncias, os detentores do poder condenam-nos ao silêncio dos proscritos. Criam-nos acrescidas dificuldades. Antepõem-nos obstáculos à ação. Como que a pretender que soçobremos.
Terá sido por ser “temido por este sistema iníquo e corrupto”, nas palavras escritas por Paulo de Morais (2011)? O que leva este sistema a temê-lo ou tê-lo temido?
Quando se reconhece o óbvio e o denunciamos (“o rei vai nu!”) advêm daí as mais soezes perseguições. Neste conúbio economia / política quem paga a fatura, empobrecendo, é o consumidor… Uma economia robusta não carece de se erguer contra quem lhes paga os luxos. Um “capitalismo humanista”(?), como vem soprando do Brasil, em oposição ao “selvagem”, talvez se pudesse ensaiar… com distintos resultados. Não se reivindica o impossível, apenas o respeito pela dignidade da pessoa humana…
Vamos a medidas práticas: o que tem sido feito em Portugal para melhorar a questão do consumo, em prol de uma sociedade menos consumista e desperdiçadora? O que falta, ainda, ser feito e que não pode mesmo falhar?
A ausência manifesta, nas escolas, de programas de educação para o consumo e, na comunidade, de adequada formação, deita a perder as respostas suscetíveis de “melhorar a questão do consumo e da sociedade do desperdício”… Logo, a nula preocupação, a tais níveis, permite que o status quo persista ou se agrave. Cada vez, afinal, mais distantes das metas da «Agenda 2030». Não se trata de obsessão pela escola e pela educação: “os hábitos” constituem “uma segunda natureza” (Aristóteles dixit)…
Este ano, numa crónica de jornal, escreveu sobre “a hipocrisia da sustentabilidade e a escassa durabilidade dos bens”. Quer explicar-nos do que se trata, sucintamente, e que desafios deixa?
Se se ampliasse em 5 anos a vida de alguns produtos, poupar-se-ia 12 milhões de toneladas de CO2: retirar-se-ia de circulação 15 milhões de veículos automóveis movidos a energias fósseis. Em vez uma garantia legal robusta, fixou-se em 2019 o mínimo de dois anos, aos Estados cumpria ampliá-la. 23 mantiveram-na. Suécia, Espanha e Portugal fixaram três anos. A Finlândia, o “tempo útil de vida”. E Portugal? No terceiro ano, inverte o ónus: é o consumidor que tem a prova da não conformidade (a avaria, o vício), no momento da entrega do bem. É uma “prova diabólica”: o consumidor não a consegue superar e a garantia reduz-se a dois anos. De cada vez que se legisla, a Comissão Europeia diz que há que rever a garantia. Não ousa fazê-lo e cede perante o lóbi dos fabricantes. Hipocrisia ou fraqueza?
Como desafazer aquele mito e preconceito, para muita gente, que será mais feliz quanto mais dinheiro tiver e mais gastá-lo em bens luxuosos? Onde estão os sentidos do recato e da poupança?
Se a nível escolar houvesse um componente de educação social, e se se confrontasse os alunos com a realidade dos que vivem entre os limiares da miséria e da pobreza, a evidência talvez os levasse a um dar de mãos, a uma maior solidariedade, a um propósito de esbatimento das diferenças… “Pobres sempre tereis!” Pejorativamente se ouve que “quem gosta de pobre… ou é rico ou é intelectual!”. De Joãozinho Trinta, proeminente no samba, no Rio: “pobre não gosta nem de miséria nem de pobreza, do que gosta mesmo é de luxo e ostentação!”. As resistências são enormes e o caminho, nada fácil, da ressocialização exige enorme investimento em intelecto e no mais: que se prepare os mais jovens para que a miséria mais gritante não “conviva” com o luxo mais pornográfico… E a vida, sem remorsos, se reabilite!
Com quase 84 anos de vida, sente-se ainda revigorado por se manter nesta luta de vida por esta causa pública? Há algo de novo e/ou diferente que ainda gostasse de realizar?
O decorrer dos anos não reduziu nem o volume nem a intensidade do labor a que nos votamos: no CEDC - Centro de Estudos de Direito do Consumo, como no Instituto Luso-Brasileiro de Direito do Consumo, a difusão dos direitos não conhece tréguas; a presença em um ou dois programas / mês na Kuriakos TV, uma rubrica semanal em «Isto é o Povo a Falar», um programa semanal de meia hora, na Rádio Valor Local, um registo semanal para a Rádio Regional do Centro e um outro para 50 rádios regionais, um consultório do consumidor para as ‘As Beiras’, um artigo para 50 periódicos regionais, dois, três artigos mês para revistas científicas fora de Portugal, um artigo de opinião mensal para um dos diários de Coimbra, a direcção da Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, editada em Belo Horizonte, a participação semanal no Balcão do Consumidor de Passo Fundo e, outrora, do Procon de Porto Alegre, a colaboração semanal iniciada com o Jornal Sul, do Rio Grande do Sul, o comentário de situações do quotidiano para o NETCONSUMO, dois a três vídeos semanais com comentários a situações pontuais, a intervenção na Denária em prol da liberdade de circulação da moeda física, duas a três conferências por mês, presenciais ou virtuais… Regressámos de uma longa Peregrinação Cultural ao Brasil: mês e meio de estada, 9 dos 27 Estados e o DF visitados; 15 localidades de Norte a Sul; 42 conferências; mais de 20 temas versados; 3 extensas intervenções em televisões. Tornaremos já em junho. É imensurável a atividade que abraçamos com a maior abnegação, o fervor e o entusiasmo dos verdes anos…
Olhemos ao país e ao mundo: ondas – cada vez maiores – de populismos, de desinformação, de demagogia, de ódios e conflitos, de propostas políticas que ultrapassam linhas vermelhas, etc. O que lhe vai na alma diante de tudo isto?
A educação é, continua a ser, em nosso entender, a mola real… Não podemos continuar a ter uma escola do séc. XIX, com professores do séc. XX e alunos do séc. XXI… Há que preparar profundamente os jovens para a escola da Era Digital, inculcando-lhes os valores próprios dos tempos que correm, recriando-os, em apelo à autenticidade. É pela escola que se enfrentará os desafios do quotidiano, uma escola adaptativa em que figurem docentes de primeira água, luzeiro no firmamento escolar, mão-na-mão, sem iníquos pedestais... Escola aberta a vocações e com um ideário que constitua o alfa e o ómega de um novo enquadramento, descodificando, desmistificando, em que se desenvolva a arte de pensar, de modo crítico e não em aceitação passiva de novos estereótipos que conduzem à subjugação, a outras vias de um abominável esclavagismo… Só não soçobramos perante o aparentemente inevitável porque cremos que ainda é possível o retorno a um clima saudável em que o homem deixe de ser o vilão, o “lobo do homem”, e se espelhe no seu semelhante o quadro de virtudes que cada um cultiva no canteiro próprio. Carecemos de recriar «John Locke» (“os homens seres eminentemente bons”) e de sepultar fundo o Thomas Hobbes (“o homem lobo do homem”)… Demos espaço à Esperança! Confiemos nos Homens e nas Mulheres! João Paulo II, da ‘meia-laranja’ no Paço das Escolas, em Coimbra, aquando da sua breve estada na Lusa-Atenas, proclamou-o em termos enfáticos: “Homens, sede Homens”!
Sente que esses perigos e contravalores constituem um ataque à liberdade, à democracia e demais Direitos Humanos? Como travá-los e conseguir reverter-se para uma onda mais moderada pelo bem comum universal?
A esperança dos povos exaure-se. E porque “de promessas está o inferno cheio”, há que oferecer às populações soluções em que se proclame com verdade “as pessoas, enfim, primeiro”. Mas que tal não seja um mero pendão de campanha, antes um desígnio que de todo se encha de conteúdo. É por uma escola robusta, pela educação como esteio e via de transformação, que há que lograr inverter a plataforma de subversão de princípios e valores e o abismo suscetível de atrair os ventos que varrem direitos, liberdades e garantias.. Dizia-se outrora: “casa de pais, escola de filhos”! Pela educação, há que propiciar aos filhos os valores que levem à decadente casa dos pais, com a família em franca dissolução, novos quadros que a reformem e reconfigurem. “Casa de filhos, uma nova escola para pais”, numa recomposição de gerações, numa capilaridade de ideias que torne aos valores, a uma Humanidade prenhe de afetos e sentimentos! Como o prevenia Victor Hugo: “Il n’y a ni mauvaises herbes ni mauvais hommes. Il n’y a que de mauvais cultivateurs."
Pergunto-lhe se conhece Gondomar, do que se recorda desta cidade, se já interveio nela em alguma ação ou conferência? O que lhe apraz acrescentar?
Presidia aos destinos de Valbom, Gonçalves Oliveira, homem dinâmico que reclamava distinto paradigma, quando o poder central entendia não envolver, em visão distorcida, a promoção dos interesses dos consumidores nas atribuições e competências das freguesias. Participámos em dezenas de ações, ali se instalou um gabinete de informação ao consumidor servido por universitários que exercitariam “in loco” os saberes da cadeira de direito de consumo. O projeto não resistiu, porém, nem à nossa saída do Porto nem à do presidente! Deploravelmente, nem serviços municipais do consumidor em Gondomar, nem um núcleo numa das suas mais emblemáticas autarquias. Gonçalves Oliveira sentia, com razões de sobra, que é pelas freguesias, em que a proximidade do poder é mais tocante, que se principia.
Solicito-lhe uma mensagem final e positiva para os nossos leitores. E que a possa deixar com base num lema ou pensamento (de livro, filme ou discurso) de alguém que marcou a sua vida, tivesse-o conhecido ou não…
Afigura-se-nos que Gondomar não é um mero auditório do Porto Metropolitano. Gondomar tem essência, tem carácter, tem um perfil próprio. Que não perca os seus pergaminhos! Que Gondomar seja um laboratório de ensaios no que tange a novas fórmulas sociais. Que os seus eleitos saibam interpretar tais sentimentos e transformem ideias em ação, no recorte de uma individualidade própria, que há que alimentar e recriar instante a instante. E que a sua comunidade de consumidores seja de uma exigência extrema, reivindicando um Serviço Municipal do Consumidor, à margem da inércia legislativa do poder central ou da amorfa Associação Nacional de Municípios. Que Gondomar dê uma preciosa lição ao Porto a tantos concelhos. Numa austera, mísera e mesquinha realidade que há que superar a todo o transe! Que Gondomar puxe, afinal, pelos galões e mostre a sua raça! Os seus filhos exigem-no. Os seus filhos merecem-no!