Minas de Carvão de S. Pedro da Cova encerraram há 45 anos. Trabalhadores recordam “tempos difíceis” no I Encontro organizado pela Junta e Museu Mineiro
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A data de 25 de março de 1970 está gravada na memória de grande parte da população de S. Pedro da Cova como o dia em que mais de 700 trabalhadores foram despedidos das Minas de Carvão da freguesia. Um misto de sentimentos envolve, ainda nos dias de hoje, alguns ex-mineiros e funcionários que recordam o emprego que lhes permitia sobreviver mas também “a escravidão” vivida durante parte dos 170 anos de funcionamento das minas e as vidas de amigos e colegas que se foram perdendo no exercício das suas profissões. A União das Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova e o Museu Mineiro decidiram agora juntar estas “vozes do passado” num primeiro encontro de trabalhadores, 45 anos depois. O Vivacidade recolheu algumas dessas memórias.
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Ana Martins de Oliveira tem 90 anos e dedicou 17 ao trabalho nas Minas de Carvão de S. Pedro da Cova. Atualmente, passa grande parte do seu tempo no Centro de Dia da Associação Social Estrelas de Silveirinhos. Ao Vivacidade, conta como era difícil “viver das minas” a empurrar vagonetas [carrinhos de transporte de carvão], um trabalho ainda assim menos “arriscado” que o dos homens. “Eles trabalhavam lá em baixo, as mulheres não. Era um trabalho muito duro, uma escravidão, mas era onde podíamos ganhar dinheiro. Fiz muitas coisas: partia carvão, escolhia carvão, entre outras coisas. Ia buscar a marmita à cantina, mas passávamos muitos trabalhos. Trabalhávamos 8 horas por dia. Ganhávamos sete escudos e depois passamos a ganhar 11 escudos”, afirma Ana Oliveira. A ex-trabalhadora das minas ainda hoje sente “o pó” nos pulmões. “Às 10h íamos buscar o pão para comer, vinha cheio de pó e é por isso que hoje temos os pulmões cheios de pó e problemas a respirar”, conta a pedroense. “As minas mataram muita gente”, lamenta a nonagenária, admitindo que, também ela perdeu um amigo nos escombros das Minas de S. Pedro da Cova. Ainda assim, não se registam apenas memórias negativas de época. “Também temos momentos positivos, porque cantávamos nas minas e éramos felizes”, refere Ana Oliveira.
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Com opinião semelhante, Ana Silva Santos, dois anos mais nova, também admite que se viveram momentos de alegria nas minas. “Éramos quatro mulheres de cada grupo a empurrar o carvão e trabalhávamos com alegria e cantávamos”, explica, lamentando o encerramento do complexo mineiro. “Fechar as minas trouxe fome a muita gente. Quem me dera andar nas minas ainda hoje. Andei muito tempo a trabalhar no lodo, a acartar, e depois passei a escolher o carvão na fava. Íamos com as bacias do carvão na cabeça. Tínhamos um capataz muito mal criado que falava torto connosco”, recorda.
As dificuldades vividas na altura são as mesmas que a sua colega do Centro de Dia recordou: salário baixo, más condições e problemas de saúde associados à profissão. “Não me lembro quanto é que ganhava, mas não dava para nada. Hoje tenho muitos problemas respiratórios. Apanhávamos com o pó todo que fazia muito mal à saúde”, afirma Ana Santos.
“Cheguei a ficar preso lá em baixo”
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José Manuel Pinto Ferreira, conhecido na freguesia como Manuel Ventura, trabalhou nas minas 11 anos e oito meses. De positivo, pouco se recorda. “De cada vez que falo nas minas é uma doença. Hoje fala-se em trabalho não remunerado, na altura trabalhávamos todos os dias e havia alturas em que não recebíamos, porque éramos multados e trabalhávamos de borla. Eu era mineiro de primeira e na altura ganhava 23 escudos. Era uma vida muito difícil”, lembra ao Vivacidade. “Chegávamos lá, despíamo-nos, púnhamos o capacete na cabeça e começávamos a trabalhar. Quando esticávamos as pernas o suor saía-nos pelas pernas abaixo” acrescenta o ex-mineiro que conta como desafiou a própria vida debaixo de terra. “Cheguei a ficar preso lá em baixo, cerca de 48h, porque a parede desabou e fiquei lá preso. No final do dia levantavam-se as chapas do serviço e faltou levantar a minha, foi aí que deram falta. Começaram a bater nos canos, que era a forma como comunicávamos. Eu ouvi o som dos canos e bati no cano com o gasómetro para responder, foi aí que me descobriram. Furaram por baixo de mim e conseguiram chegar até mim” explica com alguma dificuldade, Manuel Ventura. “Tive colegas que ficaram lá subterrados, não conseguiram resgatar os corpos”, admite ainda o mineiro. Com 75 anos, o ex-trabalhador das Minas de S. Pedro da Cova não lamenta o acontecimento de 25 de março de 1970. “As minas deram trabalho a muita gente, mas o encerramento foi positivo porque morreu ali muita gente”, conclui.
Quase dois séculos de “exploração desenfreada”
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“É difícil determinar se o encerramento foi bom ou mau para a freguesia. Não consigo responder de forma objetiva. As minas encerraram e os responsáveis pela exploração desenfreada de alguns operários desta freguesia deixaram-na ao abandono, depois de anos a explorar as suas riquezas naturais”, afirma Daniel Vieira, presidente da União das Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova, em conversa com o Vivacidade. “O encerramento ocorreu em pleno regime fascista e o Estado não defendeu os direitos dos trabalhadores. Quando as minas encerraram não foram salvaguardados os anos de produção dos mineiros, nem foram criadas condições para a população refazer as suas condições de vida”, lamenta o autarca.
Para a freguesia, ficou um legado em forma de ruínas, com o Complexo Mineiro deixado ao abandono. Mais do que isso, o trabalho mineiro “muitas vezes caracterizado como um trabalho das trevas”, segundo o presidente, trouxe a S. Pedro da Cova “acidentes brutais e casos de deficiências para a toda a vida.” “Aqui perderam-se vidas e em breve vamos reeditar um trabalho feita pelo Serafim Gesta Mazola, sobre um conjunto de entrevistas realizadas a mineiros, sobre as suas condições de trabalho”, conta. “Estamos a assinalar os 45 anos de uma empresa que aqui existiu durante quase dois séculos [170 anos] e da qual a freguesia pouco beneficiou. No entanto, não queremos apagar a história e queremos dar a conhecer às novas gerações o trabalho dos seus pais e dos seus avós, esse é o grande objetivo desta iniciativa”, afirma ainda Daniel Vieira.
“Estado deveria assumir responsabilidades quanto à conservação deste património mineiro”
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Quarenta e cinco anos depois, Daniel Vieira pensa que é o memento de agir. “Temos procurado dar o nosso contributo para a preservação da memória, nomeadamente com o Museu Mineiro, para o qual nunca tivemos um apoio do Estado. Julgamos que a preservação da memória devia passar pelo Complexo Industrial Mineiro e no nosso entendimento o Cavalete do Poço S. Vicente deveria ser preservado, porque é o ex-líbris da freguesia. Estas chegaram a ser as principais minas de carvão de país e este espaço poderia ter uma dimensão museológica regional”, refere o presidente.
Recentemente, com a remoção dos resíduos perigosos da freguesia, o governo e a autarquias locais voltaram a falar no projeto ‘Pulmão Verde’, que visa promover a qualidade de serras, vales e rios e poderá chegar à Zona do Complexo Mineiro.
Ao Vivacidade, o presidente da Câmara Municipal de Gondomar, Marco Martins, admite essa possibilidade após uma avaliação no terreno. “Queremos que a área de intervenção do projeto Pulmão Verde seja alargada para a área dos escombros do Complexo Mineiro para beneficiar a revitalização e o futuro daquela área. No entanto, isso só pode ser definido após a remoção dos resíduos e uma avaliação do terreno”, explica Marco Martins.
Na opinião de Daniel Vieira, com ou sem ‘Pulmão Verde’ é o Estado que deve intervir na recuperação de uma zona classificada como Monumento de Interesse Público. “Não sabemos se é através do Pulmão Verde mas achamos que o Estado deveria assumir responsabilidades quanto à conservação deste património mineiro. No entanto, com intenções não resolvemos o problema”, refere. “Todo o investimento que venha a ser feito pode ser rentabilizado do ponto de vista cultural e até turístico”, acrescenta o autarca.
Dezenas de mineiros partilharam experiências no I Encontro de Trabalhadores
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Sobre o Encontro de Trabalhadores, Daniel Vieira é claro ao afirmar: “a história é feita de memórias das próprias pessoas que trabalharam nas minas e estamos a procurar recolher testemunhos e experiências pessoais de ex-operários. Este encontro permitiu aprofundar esse trabalho porque as pessoas não são eternas e esta história deve perpetuar-se.” A responsável pelo Museu Mineiro, Micaela Santos, não podia concordar mais. “Este Encontro já deveria ter sido realizado, mas nunca é tarde para a fazer. Atualmente temos inscritos 30 ex-mineiros. Muito do que transmitimos aos que nos visitam é baseado na informação que recolhemos dos ex-mineiros. O Museu precisa de saber quantas das pessoas que trabalharam nas minas ainda estão vivas. Para nós é muito gratificante ver o encontro destas pessoas”, refere.
Para o Encontro foi preparado um convívio com dança e música e Micaela Santos apelou à participação das “várias entidades que existem na freguesia e que forneciam determinados serviços relacionados com as minas, como por exemplo, a AD São Pedro da Cova que teve início nas minas, enquanto associação desportiva e recreativa do pessoal.”
Para o futuro do Museu Mineiro, “o arquivo precisa de ser preservado e colocado ao dispor do público para consulta”, afirma a responsável, e “a zorra recuperada”. “Estão programadas iniciativas até ao final do ano para angariar fundos para a recuperação da Zorra. Estamos a falar de um investimento entre 40 a 50 mil euros. Ainda há um longo caminho a percorrer”, finaliza a responsável pela instituição.