A revolução do 25 de Abril é algo que marcou, marca e marcará todas as gerações por tudo o que ela traz, sobretudo a liberdade e o fim da ditadura. Numa altura em que no mundo volta a pairar sobre estes cinquenta anos, que agora comemoramos, algumas dúvidas sobre a liberdade conquistada, o Vivacidade foi conversar com pessoas que residem no nosso concelho que vivenciaram esta revolução de perto.
António Venâncio, natural de São Pedro da Cova, tem 87 anos e viveu de perto o 25 de Abril.
Do que se recorda, como é que era a vida antes do 25 de Abril?
Eram tempos muito difíceis que passávamos na altura. Uma sardinha dava para três. Não tínhamos televisão, era preciso pagar para ver. Fiz parte até de um clube na Mó, que estava sempre cheio, porque nós não tínhamos acesso a esse tipo de tecnologia. Para nós era um caixote com pessoas lá dentro. Não havia eletricidade, tínhamos de utilizar os gasómetros, que por si só já tinham um cheiro horrível. Para irmos à mercearia... quando íamos, era ainda mais complicado, não havia dinheiro. Nós mineiros ainda tínhamos acesso a uma broa com um valor mais reduzido, dura, mas tínhamos alguma coisa para comer e dividir com a família. Eu nunca passei fome, mas os meus irmãos mais velhos certamente sim. Até porque para irmos ao centro urbano, como o Porto, tínhamos de caminhar duas horas para cada lado, porque não havia transportes. À ida ainda era fácil com o cesto na cabeça vazio, mas à volta... (respira fundo) vinha cheio e custava mais.
A falta de liberdade, a PIDE, são as principais palavras que se usam para falar da ditadura salazarista, seguida de Marcelo Caetano. Tinham medo de falar? Como é que se supera isso?
Tínhamos, não sabíamos em quem confiar. Não falávamos para ninguém ouvir. Tínhamos os bufos e bastava não gostarem de nós para nos denunciarem. Nós já sabíamos quando íamos ao café, que quem tinha o papel no bolso era contra o regime. Se houvesse um bufo aparecia logo a PIDE para levar essa pessoa. Ainda me recordo, que há um senhor daqui de São Pedro, que foi levado pela PIDE e até hoje não sabemos o que se passou. Eram tempos muito difíceis. Tínhamos de ouvir mais do que falar.
O que é que sentiu quando soube do 25 de Abril?
Respirei, mas continuei a respirar medo nas horas seguintes. Era um aperto constante, que nem conseguimos acreditar. Nesse dia tivemos um almoço de empresa, que foi dos poucos que tivemos à época. Mas a confiança ainda era difícil. Ainda bem que aconteceu.
Como é que foi a sua vida pós 25 de Abril?
Uma realidade completamente diferente. Tudo começou a ser mais fácil. Começaram as lutas sindicais que, praticamente, obrigaram as entidades patronais a pagarem mais e conseguíamos comprar mais e comer melhor. As grandes fábricas, e as grandes empresas começaram a aparecer no pós 25 de Abril, porque aqui em São Pedro só havia as minas. Quem era de São Pedro era obrigatoriamente mineiro, ou ia passar por lá. A vida agora é muito melhor.
Acha que os valores defendidos em Abril estão a perder-se?
Não. Acho que as pessoas podem estar a usar mais do que o pretendido. Mas não. A liberdade foi a nossa luta e agora somos livres. Não há nada mais bonito que isso.
Fernando Vilela, fanzerense, foi para a Guerra de Ultramar, enquanto escriturário. Já previa a ocorrência do 25 de Abril, só não sabia a data em concreta em que ia ver recuperada a sua liberdade.
Do que se recorda, como é que era a vida antes do 25 de Abril?
Participei na guerra de Ultramar. Sabia que o 25 de Abril se ia dar. O que mais me recordo é, de facto, de todos termos sido obrigados a ir para a guerra. Foi triste e revoltante. Não tive escolhe e fui. Fui para a recruta e quando estou na primeira semana com toda a pressa mandam-nos formar e vestir a farda de saída, estávamos todos aflitos. Foi-nos entregue um passaporte sem data de regresso e mandaram-nos para casa. Aí soubemos que tinha morrido Salazar. Apesar que se constava que já tinha falecido dias antes. E começou a governar Marcelo Caetano. Uma transição pacifica, tão pacifica como eu estar aqui a falar consigo agora.
Lembro-me que antes do 25 de abril havia um radio, em que o meu pai colocava um copo em cima do rádio para que não se fosse ouvido pela PIDE. Uma coisa que me fazia confusão na altura é que levavam os votos a casa, à noite, já feitos. Ninguém votava em ninguém já ia tudo feito.
Como é que viveu a guerra do Ultramar?
Era escriturário. Fui para a Guiné. Desembarquei a 9 de Abril, na Sexta-Feira Santa. Nunca me vou esquecer. Não sabia para onde ia. Quando cheguei fiquei gelado. Fui apresentar-me ao major Costa Brás e como a minha profissão era escriturário ele deu-me umas mensagens para escrever e se eu não tivesse capacidade me mandavam para o mato. Caiu-me tudo. Fui cheio de medo e trabalhar. O horário era tipo escritório das 8h00 as 17h00 com hora de almoço.
Disse anteriormente que já sabia que o 25 de Abril ia acontecer. Conte-nos essa história.
Já sabia que o 25 de abril ia acontecer, só não sabia quando, nós fizemos um memorando para o Spínola, para a libertação da Guiné, em que o Spínola ficava a governar tudo. No tempo do Spínola só havia guerra se ele quisesse. Nós falávamos entre todos e já sabíamos que ia acontecer, estava tudo a ser preparado. Estávamos com muito medo e nos últimos tempos já nem saíamos do quartel.
Como é que soube que o 25 de Abril tinha acontecido?
Quem me dá a notícia do 25 de abril, foi um senhor que me veio entregar um carro, que tinha comprado. Soube logo no dia 25 de manhã. Nessa data nem um ano tinha na guerra de ultramar. A minha participação propriamente dita foi no 1º de maio. Nunca houve um como aquele. A Avenida dos Aliados estava repleta de gente. Mas do nada ouve-se alguém a gritar “olha os soldados” e nós começamos a fugir. Claro que ninguém fez nada, mas ainda se notava algum medo. Começamos a viver depois do 25 de Abril.
Acha que os valores defendidos em Abril estão a perder-se?
Acho que as pessoas já não dão o verdeiro uso do que foi de 25 de abril. estamos a caminhar para o oposto. Após o 25 de abril, nos primeiros 20 anos andávamos muito sossegados. Sinto que anda muito perto de um novo 25 de abril. Acho que agora há excesso de liberdade. Sinto, sobretudo, que o dever está cumprido. Na altura queríamos acabar com o fascismo e a Guerra no Ultramar e isso está cumprido.
Pedro Ferreira, natural de Melres, tem 70 anos e vivenciou o 25 de Abril, enquanto estudante universitário em Coimbra e membro do Grupo de Teatro da Universidade.
Do que se recorda, como é que era a vida antes do 25 de Abril?
Recordo-me de muita coisa. Em Melres, a terra que eu nasci, era uma população que vivia essencialmente da agricultura, da falta de condições sanitárias, era uma vida muito pobre. Na altura só havia duas autoestradas em Portugal, impensável nos dias de hoje, uma entre o Porto e os Carvalhos e outra entre Lisboa- Vila Franca, ainda construídas no tempo de Salazar, bem como os comboios, que eram poucos e deficitários. Na época, nós jovens, vivíamos com medo de ir para a guerra colonial. Mas era obrigatório ir, e eu tive sorte. Apesar de ser apto para ir para a guerra como estava a estudar pedi adiamento e nunca fui. Quando terminei o curso já não eram precisos militares. Aliás, uma coisa bem presente na minha memória era o fenómeno Fátima que existia em Portugal, na altura, em que apesar da fé as mães de joelhos choravam pelos seus filhos que estavam no Ultramar. Nós crescíamos com a certeza de que íamos para lá.
Não havia muito conhecimento político, só os comunistas é que estavam envolvidos, e tudo com a máxima descrição possível.
Como é que soube que o 25 de Abril tinha acontecido?
Na noite do 25 de Abril, de madrugada começou a haver notícias sobre o que estava a acontecer. Após as canções senha o “Depois do adeus” e a “Grândola Vila Morena”, que ninguém na altura percebeu o que era, só depois é que soubemos. Aliás maior parte das pessoas não ouviram as músicas. Era um sinal para o Movimento das Forças Armadas. Depois claro começamos a perceber pelas notícias o que estava a acontecer. Numa fase inicial ainda houve uma dúvida, pois a 16 de Março desse mesmo ano já tinha havido uma tentativa de combate ao regime, mas foi mal sucedida, então quando nos disseram do 25 de Abril havia esse receio. Contudo, espontaneamente, quando soube da revolução disse “até que em fim”, não sabia porquê de estar a dizer isso, mas disse, era porque era algo de muito bom estava a acontecer.
O que acha que mudou após o 25 de Abril, na sua freguesia, Melres?
Primeiramente o presidente da Junta era nomeado pelo governo, na altura Dias Moreira, e ainda havia um regedor, que tentava administrar a justiça para as pequenas causas. As casas não tinham casa de banho, e após o 25 de Abril essa necessidade é levantada, bem como a eletricidade, pois tínhamos luz através de um gasómetro, que cheirava muito mal. A qualidade das casas, com problemas de urbanismo e mau ornamento, agora vê-se que as casas têm outras condições de vida, completamente diferentes. Sou de uma geração que se contava pelos dedos das mãos o número de carros em Melres. Na altura não havia centro de saúde, agora já há. O acesso ao ensino, não só em Melres, mas no país inteiro, também veio após o 25 de Abril. Havia campanhas de alfabetização, para que as pessoas fossem à escola, e foi aí que surgiu, também, o ensino noturno. Uma coisa que nunca esquecerei é a baixíssima abstenção nas eleições pós 25 de abril. Ainda me lembro de subir as escadas para ir votar. Foi e, ainda é, uma sensação incrível, escolher quem quero que me represente.
Acha que depois do 25 de Abril começou a haver um maior interesse político?
Até ao 25 de Abril ninguém tinha consciência política, não havia muita formação. Agora a maior parte da juventude não se interessa mesmo, não é pela falta de conhecimento político. Naquela altura fomos de tal maneira formatados que neste momento não consigo ser de um partido de direita ou de extrema-direita, tendo em conta tudo o que passamos na época. Acho que as pessoas da minha geração, tal como eu, não conseguem perceber como é que um partido de extrema-direita está a crescer.
Acha que os valores do 25 de Abril se estão a perder?
Acho que não. A juventude está despreocupada com esses valores porque para eles já é um bem adquirido, para eles é inquestionável perder o direito à liberdade. Hoje dispomos de muitos equipamentos que não dispúnhamos há 50 anos. Ainda temos muito caminho para percorrer, mas quem viveu em 1974 e vê o que temos em 2024 é como se vivêssemos numa realidade paralela.
O que significam para si os 50 anos do 25 de abril?
Tudo de bom é uma mudança para a vida dos portugueses completamente distinta da que estavam a viver no antes do 25 de Abril. Tudo o que aconteceu depois do 25 de abril é bom e positivo. Claro que há lacunas, mas é uma coisa excelente. Gostaria que estas conquistas continuassem a desenvolver-se.